A GRANDE DIFICULDADE DE SER HUMANO
(isto sou eu a pensar, não deve interessar-vos)
A meditação do homem sobre si – e nada mais do que isto. É quase inútil escrever sobre este tema, dada a grande dificuldade de ser humano. E tudo piora com o desafio do “conhece-te a ti mesmo”, que chega a ser aterrador.
Os universos culturais (mais ou menos diferenciados entre si) radicam, nos seus alicerces desejavelmente fortes, na construção de figuras, erguendo imaginários próprios e, com maior extensão, elaborando mitos (isto é, narrativas de caráter simbólico-imagético) autóctones. Por extensão todavia cada um de nós é não só produto de mitos – como dos mitos que nos atribuímos e por vezes criamos. O mito explica-nos (e até as nostalgias). Desdobra-nos, no que entendemos por condição humana (e confere explicações cósmicas ao que o nosso interior indaga). Afasta-nos. Porque o que para uns é, para outros nunca será.
Na ausência de uma (qualquer) explicação histórica fundadora, o mito legitima os povos, dá-lhes o passado, mesmo impensável, que não só os gera como constrói e que lhes permite a exibição: somos isto a que chegámos porque para trás ficou o que para nós as raízes nos ditaram.
Ao acreditarmos no que imaginamos, somos construtores de uma nova realidade, onde, afinal, esse imaginário se sedimenta, dilui e permite uma nova etapa que aceitamos como real e realidade. Assim torna-se-nos cómodo encontrar o nosso lugar num sistema. Podia-se acrescentar: num sistema de valores. Mas o que uns valorizam outros deixam de fora. Por isso os universos culturais nem sempre comungam – palavra dúbia, cristalizada numa tão própria categoria de valores! -, melhor, nem sempre coincidem de modo a criar unidades evidentes. Tanto que se torna muito difícil considerar legítima qualquer ideia de “identidade cultural”, pois as linhas de uma iso-cultura são sempre imprecisas.
Por vezes o que imaginamos, ou o que queremos imaginar, não pode ser integrado em nenhum sistema (a verdadeira imaginação é sempre uma guarda avançada e devia ser inédita enquanto parte frontal do que criasse). Pelo menos [o que imaginamos] não pode ser integrado em nenhum sistema analítico, ou em última análise, tranquilizador.
Registamos por tudo isto duas categorias (pelo menos duas) de seres humanos. Numa delas reside aquele que está na origem das coisas, que as pensa, que as transforma, que adquire conhecimento, aplicando-o, e que é sensitivo, permitindo-se emoções, inteligência e alfabetização emocional e a vida em partilha com o outro, no outro; em si e para lá de si. Há por assim dizer um humano inesgotável, não eterno mas inesgotável enquanto vive, pensa, age, fala e sente com dimensão humana. E há outro. Normalmente o segundo não quer ir ao âmago das coisas. Prefere lucrar com elas, rápida e insensivelmente de preferência, prefere destruí-las, menosprezando o seu próximo. Pode fazê-lo numa pequena escala – de mesquinhez, de intolerância, de violência (caseira ou de grande dimensão social), de conflito contínuo, de opressão, repressão, de ditadura, de insanidade.
O primeiro reconhece-se enquanto indivíduo, o segundo enquanto individual. São de universos culturais opostos. Normalmente o segundo lança a missionação de acabar com o primeiro, ou de, pelo menos, o reduzir ao entorpecimento.
Estes dois tipos do humano, verso e reverso, são a contradição do próprio ser. Um vive da sua vida. O outro dissolve-se no supra-pessoal e incomoda todos os outros. Um é a distopia da utopia do outro. Mitos do inconciliável, acho eu.
Alexandre Honrado
Historiador